Publicação compartilhada da Coluna APARTE do site JLPOLÍTICA, de 05 de novembro de 2022.
Por Acrísio Gonçalves de Oliveira *
Quando comecei a escrever esse texto, João Muniz (1941-2020), o locutor dos meus sonhos, não tinha morrido. Porém, o tempo passou e ele já se foi há mais de dois anos! Atuando por muitos anos na Rádio Esperança de Estância, fazendo diversos programas desde musicais a esportivos, foi na Rádio Mar Azul FM que comandou um programa de esporte, sua área preferida.
Mas, antes de falar desse extraordinário mestre da comunicação sergipana, precisarei recorrer ao campo das reminiscências, revolver lembranças do tempo de meninice, pois João Muniz nelas se encontram. Tendo nascido no começo da década de 1970, num pequeno povoado de Santa Luzia do Itanhy (o inesquecível Retiro), é que em fins desses anos surgem as tais lembranças. Infelizmente, meu nascimento não se deu num momento de alegria da juventude brasileira. Foi bem no período dos “anos de chumbo” da ditadura do Brasil, a qual faria morrer muita gente nas suas sessões de tortura. Por ora, para nossa infelicidade, uma matilha pestilenta tenta achar brilho nesse passado criminoso da nossa história.
Quando estava para nascer, rapidinho teve meu pai que chamar Dona Maria, conhecida por Maria Branquinha. Uma senhora parteira que morava a uns três quilômetros de casa. O parto foi um sucesso! Não tinha sido o seu primeiro trabalho. Quando crescidinho minha mãe a ela me apresentou: “Essa também é sua mãe e você sempre peça a bença a ela”. Assim, quando me via, Mãe Maria rogava que tivesse muito sorte na vida. Rogava a Deus e que de mim sempre tomasse conta. Seus dizeres foram ouvidos. Era uma pessoa de bom coração.
Mãe Maria fumava muito e parecia sentir-se melhor quando fazia isso de cócoras. Ela colocava o vestido entre as pernas e, nos beiços, um cachimbo que fazia muita fumaça. Por isso o cheiro dela era forte, porque exalava de suas roupas o preparo do cachimbo, a fumaça inebriante. De tanto fumar, acho que nem comia direito. Lembro-me perfeitamente do jeito, da forma de ser de Mãe Maria. Quando a conheci já era idosa, bem magrinha, de pele engelhada e voz fina. Além de fumar ela costumava tomar muita cachaça e cuspir bastante. Morava numa casa de taipa e telha, no caminho que seguia do Retiro para o Candeal, hoje um bairro de Estância.
A cachaça se aprofundou quando morreu Xeleléu, único filho. Nutrindo carinho especial, minha mãe a chamava de “Cumade Maria Branquinha”. Quando se referia a ela e lembrava dos seus cuidados para comigo, sorria e enchia de lágrimas os olhos. Minha mãe tinha um cheiro característico, cheiro materno. Porém, já se foram as duas e o cheiro de ambas há muito desapareceram dos meus sentidos!
Estudei as quatro primeiras séries na Escola Municipal Esmeraldo Vieira da Costa, que foi construída, coincidentemente em 1970, no ano em que nasci. Esse fato minha mãe sempre fazia questão de me lembrar. Escola pequena. Todas as séries se espremiam numa sala só. O professor era Antônio (também falecido), um tio meu, irmão da minha mãe. Tempos depois, ao perceber que na denominação da escola começava com o nome do meu pai, então lhe perguntei se era uma homenagem a ele. Para minha tristeza, disse não! Seria algo muito incomum, uma escola ter nome de gente do roçado, de preto semianalfabeto. Na verdade, tratava-se de uma homenagem que o município fez a um prefeito. Ele governou Santa Luzia em fins dos anos 1940.
A minha infância também foi tangida pela magia do rádio. A caixa falante. Quando menino, além das canções que ali tocava não recordo de outra voz senão a de João Muniz. Uma voz enxuta, limpa e apaixonante. Era a voz que contrastava com a escuridão das noites do pequeno povoado, competindo nos invernos com o canto dos sapos nos brejos próximos ao indígena Rio Aritiquiba. Casa mais afastada das demais e, na época, iluminada à candeeiro - sempre posto em um pequeno cepo sobre a mesa - ouvíamos o rádio bradar colocado sobre uma velha banquinha. Na nossa casa éramos praticamente cinco: eu e meu irmão (Anísio, já falecido), meu pai e minha mãe, além de João Muniz, no rádio. As minhas irmãs, Ana Maria e Maria Angélica, embora tenham sido ouvintes do nosso ilustre radialista, já não moravam mais com a gente.
O tempo foi passando e eu fui guardando uma imagem nítida do meu fã. Imaginava-o bem forte, de rosto meio largo. Foi com essa imagem que convivi escutando a Rádio Esperança durante muitos anos. Jamais passou por minha cabeça que o locutor dos meus sonhos fosse uma pessoa com deficiência visual. Não imaginava que estivesse escutando um gênio da memória!
Meu pai era “um pobre ousado” e adquiriu o rádio Teleunião - com sua armação de madeira - marca famosa, de som muito potente. Ele sempre lembra com muito orgulho que seus “vizinhos” – à cerca de cinco quilômetros! - diziam escutar o som do seu rádio. Só que na minha época o aparelho já se achava decadente, de som meio embolado e com o fundo apodrecido, o que facilitava a entrada de baratas. Se de repente o rádio parava de tocar, então meu pai dizia: “aí é a barata!”. E isso de barato não tinha nada! Sendo a pilhas (seis), algumas delas às vezes explodiam e isso deixava “Seu Esmeraldo” bastante nervoso.
O tempo que eu mais convivia com a voz de João Muniz eram às noites, no Programa Boa Noite Nordeste. Também passei a ouvi-lo em A Esperança Nos Esportes, pois o meu tio Antônio, acima citado, tinha um time de futebol competitivo chamado “América Futebol Clube”. O resultado dos jogos acompanhava também pela emissora na voz alegre e vibrante de João Muniz. Outro programa que ele fazia com mestria e muita alegria era o Meia Hora no Sertão, com o Trio Sertanejo. O referido programa trazia como fundo musical a canção “Onde Tu Tá Neném” (composição de Luiz Bandeira), na voz do Rei do Baião. Fizemos uma busca, com o objetivo de resgatar ao menos uma “fita K-7” com um dos programas, ou uma chamada sobre ele, mas infelizmente, nada conseguimos. Nem mesmo com um dos integrantes do programa. É possível que até nem exista algo preservado acerca do dito programa na própria emissora.
Nos oito anos que passei como um humilde locutor da Rádio Esperança, sempre no finalzinho de tarde, tinha como companheiro João Muniz. Uma coisa muito boa, porque ele foi um professor amigo. No final da Esperança nos Esportes, nos divertíamos ao som do violão, tocado muito bem por ele. Para realçar, José Félix, o diretor da emissora, também participava com seu clarinete. Enquanto eu, fazendo às vezes de cantor, capengava nas notas musicais.
João Muniz havia chegado em Estância ainda garoto e era natural da cidade de Indiaroba. Chegou com sua mãe de canoa pelo Porto d’Areia. Para nossa sorte, findou se tornando mestre navegante das ondas radiofônicas estancianas.
Ele não tinha olhos para ver, é bem verdade. Contudo, a força da sua voz serviu de guia para muitos radialistas que por ali passaram. O nosso locutor, um embalador de sonhos, artista notável, raro no Brasil, foi um radialista cuja visão não se iguala a nenhum outro!
* Escritor, radialista, professor do Estado e da Rede Pública de Estância.
Texto e imagem reproduzidos do site jlpolitica.com.br
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