Crédito da imagem: DALL-E, IT BOLTWISE
Artigo compartilhado do site PORTAL DOS JORNALISTAS, de 14 de outubro de 2025
100 anos de Rádio no Brasil – A fábrica invisível do som: quando o audiocast vira linha de produção
Por Álvaro Bufarah (*)
Há um novo som no ar − e, ironicamente, ele não vem de uma voz humana. Em setembro de 2025, a startup norte-americana Inception Point AI, fundada por Jeanine Wright (ex-Wondery), anunciou que pretende transformar o mercado de audiocasts em uma indústria de produção em massa. A promessa: gerar milhares de episódios por semana, a menos de um dólar cada, com narradores, roteiros e personalidades totalmente artificiais
A ideia parece saída de um episódio de Black Mirror, mas já é uma operação real: mais de 5.000 programas estão ativos sob a Quiet Please Podcast Network, com 3.000 novos episódios semanais e 10 milhões de downloads acumulados em apenas um ano
O modelo é direto: inteligência artificial identifica temas populares via Google e redes sociais, gera roteiros com ferramentas como OpenAI, Claude, Gemini e Perplexity, e distribui o conteúdo narrado por 184 agentes de IA personalizados, entre eles personagens como Claire Delish, uma chef de IA, e Oly Bennett, um comentarista esportivo digital. Tudo produzido por uma equipe de apenas oito pessoas.
A fundadora Wright defende o modelo com fervor: “Quem chama isso de lixo de IA é um ludita preguiçoso”, declarou ao The Hollywood Reporter. Para ela, não se trata de substituir humanos, mas de explorar nichos negligenciados: boletins de pólen, biografias locais, previsões meteorológicas − o conteúdo hipersegmentado que dificilmente justificaria uma equipe tradicional
Mas o que está em jogo vai além da eficiência. O audiocast − híbrido entre podcast e áudio programático − começa a operar sob a lógica de um mercado automatizado, onde a escuta é o produto e o som, uma variável de escala.
Esse movimento acompanha uma tendência mais ampla no setor de mídia. Segundo a Deloitte Media Trends 2025, 72% das empresas de conteúdo planejam automatizar parte da produção nos próximos dois anos, e 41% já utilizam IA para edição ou locução básica. No Spotify, por exemplo, o uso de vozes sintéticas em anúncios cresceu 215% entre 2023 e 2025, enquanto o custo médio de produção caiu quase 70%.
A consultoria PwC Global Entertainment Outlook 2025 reforça: o mercado global de áudio digital deve movimentar US$ 41 bilhões até 2027, impulsionado pela personalização algorítmica. Plataformas como Aflorithmic, Play.ht e ElevenLabs consolidam esse novo ecossistema, criando um catálogo de “personalidades sonoras” prontas para aluguel − um mercado paralelo de vozes sob demanda.
Por outro lado, um estudo do Reuters Institute (2024) alerta para o risco da “inflação de conteúdo indistinguível”: quanto mais automatizada a produção, maior a dificuldade do ouvinte em diferenciar o que é editorial, promocional ou meramente sintético.
No modelo da Inception Point AI, lucrar não depende de audiência massiva. Um episódio pode se pagar com apenas 20 ouvintes, graças ao custo ultrabaixo. Isso gera o que o pesquisador Nick Couldry chamaria de data colonialism: transformar a atenção e o comportamento humano em insumo de um maquinário de automação. Cada clique, cada escuta, vira matéria-prima para novos episódios “otimizados” − criados para performar bem, não para comunicar melhor.
O perigo não está em usar IA para criar, mas em não criar mais nada fora dela. A própria Wright admite que metade dos “personagens” de sua rede são puramente artificiais, mas sua meta é “fazer com que pareçam mais humanos do que os humanos”.
A automatização da voz levanta questões éticas e estéticas. O Stanford HAI Report 2025 destaca a necessidade de rótulos claros para conteúdos gerados por IA − um tipo de “rotulagem sonora”, equivalente às advertências em vídeos deepfake. A União Europeia avança nesse sentido: o AI Act, aprovado em 2024, exigirá que produções automatizadas revelem sua origem quando usadas comercialmente.
Enquanto isso, experimentos de audio deepfake detection da MIT CSAIL mostram que 83% dos ouvintes não percebem diferença entre vozes humanas e sintéticas em áudios de até 90 segundos. O desafio, portanto, não é técnico: é ético e editorial.
O rádio nasceu como uma arte de presença; o podcast, como uma arte de intimidade. O audiocast de IA propõe algo novo − e perigoso: a arte da replicação. O que antes era voz humana agora é fluxo de dados. A criação deixa de ser um ato para virar um processo.
E talvez seja inevitável. O conteúdo em escala não é apenas uma ambição de startups, mas uma resposta ao comportamento de consumo fragmentado. Queremos sempre mais − e mais rápido. A IA responde a esse desejo com perfeição industrial.
Mas o preço do “tudo agora” é o silêncio da autoria. O som continua − mas a voz, essa, corre o risco de se diluir.
Fontes de Referência
Castnews − “O futuro do audiocast é a produção em massa por IA, segundo nova startup” (2025).
The Hollywood Reporter − “AI startup Inception Point bets on mass-produced audiocasts” (Caitlin Huston, 2025).
Deloitte Media Trends 2025 − Automação e IA na produção audiovisual.
PwC Global Entertainment & Media Outlook 2025-2029.
Reuters Institute Digital News Report 2024.
Stanford HAI Report 2025 − Ethics of Generative Audio.
MIT CSAIL Deepfake Audio Detection Study (2024).
ElevenLabs e Play.ht − Relatórios corporativos 2024–2025 sobre crescimento da produção sintética.
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Álvaro Bufarah
Você pode ler e ouvir este e outros conteúdos na íntegra no RadioFrequencia, um blog que teve início como uma coluna semanal na newsletter Jornalistas&Cia para tratar sobre temas da rádio e mídia sonora. As entrevistas também podem ser ouvidas em formato de podcast no Link abaixo:
https://creators.spotify.com/pod/profile/radiofrequencia/
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(*) Jornalista e professor da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e do Mackenzie, pesquisador do tema, integra um grupo criado pela Intercom com outros cem professores de várias universidades e regiões do País. Ao longo da carreira, dedicou quase duas décadas ao rádio, em emissoras como CBN, EBC e Globo.
Texto e imagem reproduzidos do site: www portaldosjornalistas com br
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