Publicado originalmente no site Lamparina Scope, em 16/05/2016
Tatiana Vasconcellos: “Fomos educadas de acordo com padrões
sociais machistas. Desconstruir isso é um processo”
Por Larissa Saram
Uma das vozes feministas mais fortes do rádio brasileiro,
Tatiana Vasconcellos fala sobre direitos, desconstrução de conceitos e a série
documental sobre mulheres do cinema que está preparando
Em terra de Rachel Sheherazade, quem tem Tatiana
Vasconcellos respira aliviada e aumenta o som do rádio. Sim, rádio. Aquele meio
de comunicação que já foi considerado obsoleto e até pouco tempo atrás
amplificava as opiniões preconceituosas da âncora do Jornal do SBT, é o
responsável hoje por dar voz a um discurso feminista inteligente. Os
comentários da Tatiana são capazes de acabar com o tédio das tradicionais
emissoras AM e com o medo de, sem querer, esbarrar com a traumática musiquinha
do “Vambora, vambora”.
Os méritos da jornalista são antigos. No ar pela BandNews
desde 2006, dividiu a bancada com Eduardo Barão e Ricardo Boechat durante seis
anos. Com eles, ancorava o noticiário matutino, no horário nobre do rádio, e
fazia o contraponto dos colegas e entrevistados que, eventualmente, tendiam
para falas machistas. “Nem sempre era confortável interrompê-los, mas é
necessário tentar desconstruir conceitos que são naturalizados”, disse Tatiana
em entrevista para o Lamparinascope. Em março, ela assumiu o microfone do “Alta
Frequência”, programa por onde passa de gente da política ao pessoal das artes.
A liberdade em dizer o que pensa e defender os direitos das minorias continua.
A nossa longa conversa aconteceu por e-mail. Nela, a
vencedora de três Troféu Mulher Imprensa e integrante da lista "Mulheres
Inspiradoras 2015" da ONG Think Olga falou sobre trabalho, direitos e a
experiência de dirigir uma série documental sobre presença feminina no cinema.
Larissa Saram: Você sempre teve essa postura de defender a
figura da mulher nas discussões, tanto no trabalho quanto em rodas de amigos?
Tatiana Vasconcellos: "Sempre" é muito tempo
(risos). Não nasci feminista, ao contrário. Fomos educadas de acordo com
padrões sociais machistas. A gente aprende desde pequena que tem que sentar
direito, se comportar, se dar o respeito, não pode ser namoradeira e todas
essas coisas que aposto que você também passou a vida ouvindo. Desconstruir isso
dentro da gente é um processo. Complexo, difícil e muitas vezes lento e
dolorido. Pra mim também foi e ainda é.
L.S.: Não foram raras às vezes em que eu te ouvi
interrompendo seus colegas de microfone para corrigir e explicar porque alguns
comentários eram equivocados.
T.V.: Nem sempre esse papel é confortável, mas é necessário
tentar desconstruir alguns conceitos machistas que são naturalizados. Uma vez
um colega falava da separação de um casal de atores e dizia que a responsável
teria sido uma outra mulher, com quem o homem tinha se envolvido. Perguntei de
quem era a "culpa" numa relação que teria acabado porque o homem,
casado, se envolveu com uma outra mulher. Passamos a vida repetindo que "o
pivô da separação de X e Y" foi uma segunda mulher e nem nos damos conta.
L.S.: Até pouco tempo
atrás, você era a única mulher no horário nobre do rádio. Qual era o
significado desse cenário?
T.V.: Pra mim era desafiador e importante porque ainda que
estejamos ancorando em todas as rádios de notícias, sinto que custa mais para
as apresentadoras construírem credibilidade com os ouvintes. Pode ser algo
sutil, é uma sensação. Quanto mais mulheres estiverem ali, desenvolvendo seu
trabalho com seriedade, mais natural isso se torna.
L.S.: Você também organizava o quadro "Tem Mulher na
Área", onde você e outras jornalistas falavam sobre futebol. Imagino que
muitos ouvintes homens não curtiram muito a ideia no começo.
T.V.: Futebol é muito passional, né? O torcedor reage, às
vezes desproporcional e raivosamente. Quando mulheres falam do time dele é
fácil descambar pra algo misógino. No começo, chegavam mensagens machistas,
sim. Quando nos mandavam pra cozinha, eu respondia dizendo que cozinhávamos
muito bem, mas éramos melhores ainda falando sobre futebol (risos). Recebemos
muitas mensagens de mulheres que se sentiam representadas também ou que não
entendiam nada de futebol e, como nos ouviam todos os dias, passaram a ter mais
interesse pelo assunto. Depois de seis anos, mulheres comentando futebol na
rádio ou em qualquer outro lugar com propriedade é algo natural. Ainda tem
preconceito, mas ele não nos impede de ocupar esse lugar.
L.S.: Desde março
você assumiu o microfone do “Alta Frequência. Era um desejo antigo ter um
programa de entrevistas?
T.V.: Sempre gostei de conversar, sou curiosa,
perguntadeira. O Alta Frequência me permite fazer isso com convidados dos mais
variados segmentos. Todos os dias aprendo uma coisa nova, enxergo um ponto de
vista diferente, reafirmo algumas convicções. Recentemente li uma longa
entrevista de um dos fundadores da revista Rolling Stone com a escritora
americana Susan Sontag e ela dizia assim: "Gosto de entrevistas. E gosto
delas porque gosto de conversar, gosto do diálogo, e sei que boa parte das
minhas ideias é produto da conversação. Conversar me dá a chance de saber o que
penso". É isso.
"Está claro que proibir não impede milhares de mulheres de abortar. Quem tem boas condições financeiras faz aborto clandestino e seguro. E quem não tem? Morre?".
L.S.: Você é superativa no Twitter. Para mim, um dos seus
posts mais maravilhosos é: "Nenhuma mulher é obrigada a ser mãe. Ninguém
tem que dizer o que uma mulher deve fazer, em nenhuma situação. Já deu disso,
né". O que acha dessa pressão social da mulher ter que seguir um padrão?
T.V.: Acho esse rótulo um pouco cansativo, além de um tanto
invasivo. Essas são as bases em que nossa sociedade foi construída e se
desenvolveu. Uma mulher separada nos anos 50 era um escândalo. Um casal gay era
um escândalo. Se assumir gay era impensável. 60 anos depois é algo comum,
embora parte de nossa sociedade e de nossa classe política insista em querer
nos fazer viver de acordo com os costumes de 60 anos atrás. A sociedade vai
mudando. Em rodas de conversas de vez em quando surge um "mas você nunca
pensou em ser mãe? não quer ter filhos?". Tudo bem se eu não tiver uma
resposta definitiva pra isso? (risos)
L.S.: De todos os direitos que são negados às mulheres hoje,
quais te soam mais incoerentes?
T.V.: Do ponto de vista constitucional, o direito ao aborto
me aprece absurdo porque a discussão se dá sobre bases fundamentalistas e
religiosas e não sobre as mortes de mulheres que tentam interromper a gravidez.
A UnB, Agência Ibope Inteligência e o Ministério da Saúde fizeram um estudo que
constatou que 1 milhão de abortos são feitos por ano no Brasil. A cada dois
dias uma mulher morre, vítima de procedimento clandestino. Uma em cada sete brasileiras entre 18 e 39
anos já fez pelo menos um aborto na vida. Está claro que proibir não impede
milhares de mulheres de abortar. Quem tem boas condições financeiras faz aborto
clandestino e seguro. E quem não tem? Morre? É um problema de saúde pública
grave. Para piorar, o Congresso pode aprovar a exigência de exame de corpo de
delito que comprove o estupro. Violência em dobro: se isso virar lei, além de
ser vítima de estupro, a mulher ainda é desacreditada e terá que provar que foi
violentada.
L.S.: Realmente, é surreal!
T.V.: Isso sem falar das jovens que são proibidas de usar
shorts nas escolas para evitar assédio, inclusive de professores. Seria mais
eficiente e razoável combater o assédio e não o short. Mulheres advertidas ou
recriminadas por amamentar seus bebês em locais públicos. Como um seio à mostra
para alimentar um bebê pode ser tão ofensivo? Usar transporte público sem ser
assediada deveria ser um direito. Andar na rua e não correr o risco de ser
violentada deveria ser um direito. Usar a roupa que quiser sem que isso
signifique um "motivo" para violência deveria ser um direito.
Escolher de que maneira você quer que seu filho venha ao mundo deveria ser um
direito.
"A discriminação por gênero termina onde começa a lógica econômica: se tem dinheiro pra viabilizar o negócio, o machismo não aparece".
L.S.: Já viveu alguma situação na vida em que se sentiu
muito menosprezada por um homem, que ele tenha te diminuído por ser mulher?
Como foi?
T.V.: Ah, é recorrente, né? Das pequenas coisas, tipo, você
acaba de trocar o óleo do carro e o cara do posto diz que precisa trocar o
óleo, afinal, "mulher não entende nada de carro". Fui atleta na
adolescência, jogava vôlei em clube. E era boa, apesar de baixinha. Quando ia
bater bola em algum lugar com meninos desconhecidos, eles me olhavam
desconfiados, não davam nada, era a última a ser escolhida para o time. Quando
a gente começava a jogar, eles ficavam surpresos porque eu jogava melhor que
eles (risos).
L.S.: Você é diretora de uma série documental sobre mulheres
no cinema. Como está o andamento desse projeto paralelo?
T.V.: Muito no comecinho. Quero mostrar como funciona a
indústria do audiovisual brasileiro do ponto de vista das mulheres. Diretoras,
roteiristas, produtoras enfrentam dificuldades? Sofrem preconceito de gênero?
Tem a mesma visibilidade que os homens? Ganham salários equivalentes? Já
sentiram o preconceito na pele? Entrevistei algumas delas em São Paulo e no Rio
de Janeiro. Uma diz que é preciso adotar um comportamento "mais masculino"
no set para ser respeitada. Pelo que ouvi de uma grande produtora, a
discriminação por gênero termina onde começa a lógica econômica: se tem
dinheiro pra viabilizar o negócio, o machismo não aparece.
L.S.: Quem são as
mulheres de hoje que te inspiram?
T.V.: Há mulheres que admiro por motivos diversos. Essa nova
geração é muito forte, determinada na busca por igualdade de direitos. Entre os
estudantes que ocuparam as escolas estaduais havia muitas mulheres na linha de
frente das manifestações. Estudantes que se rebelam contra a determinação de
escolas que proíbem short. Mulheres que estão à frente das organizações
feministas, fazendo trabalhos importantes de conscientização e
empoderamento. Mulheres brilhantes e competentes
do jornalismo e da comunicação. Mulheres com projeção nacional, mundial, que
usam seu trabalho e sua relevância para colocar problemas em evidência, com a
intenção de melhorar a sociedade e tornar o mundo menos desigual, menos
violento, menos hostil e melhor têm a minha admiração.
"Ser feminista é acreditar que homens e mulheres devem ter as mesmas condições e direitos, ganhar os mesmos salários exercendo a mesma função".
L.S.: Existe alguma delas que você admire, gostaria de
entrevistar e ainda não rolou?
T.V.: Eu adoraria ouvir as histórias que Patti Smith tem pra
contar. Gostaria de falar sobre música com Brittany Howard, vocalista do
Alabama Shakes, com a Beyoncé. Sobre cinema com a Sofia Coppola. Muitas
brasileiras. Se eu citar, vou me esquecer.
L.S.: Você se considera uma feminista?
T.V.: Sim, mas não me posiciono com a intenção de ser
reconhecida como uma. Ser feminista é acreditar que homens e mulheres devem ter
as mesmas condições e direitos, ganhar os mesmos salários exercendo a mesma
função. Mulheres não devem ser discriminadas simplesmente por serem mulheres.
Acho a Tati o máximo.
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