terça-feira, 30 de dezembro de 2025

Nas ondas do amor: Joe Feitosa... nas rádios sergipanas

Artigo compartilhado do site HORA NEWS, de 23 de novembro de 2025

Nas ondas do amor: Joe Feitosa e o afeto periférico nas rádios sergipanas
Por Jairton Peterson Rodrigues dos Santos 

Recentemente, vivi uma emoção rara: encontrar, ainda que por breves minutos, um dos maiores comunicadores da história do rádio sergipano, Joe Feitosa. O encontro aconteceu na Rádio Jornal, hoje 91.3 FM, lugar que permeou minha infância no Bairro Palestina. Morei tão perto dali que a rádio era quase extensão da minha rua, mas, como tantos meninos periféricos de Aracaju nos anos 1980, 1990 e início dos 2000, jamais tinha atravessado aquelas portas.

Foi preciso que eu estivesse a caminho de um debate com os companheiros do SINTESE, no programa “SINTESE em Ação”, para que o acaso me presenteasse com duas alegrias: reencontrar um ídolo da infância e ocupar um espaço cultural e educacional que, historicamente, raramente se abre para corpos negros e periféricos. Ver Joe Feitosa ali, de perto, devolveu-me lembranças de um tempo em que o rádio, e especialmente o programa Transas 98, ensinava aos meninos da periferia algo precioso: a possibilidade do amor.

A história do rádio no Brasil começa oficialmente em 1922, mas sua força como instrumento popular se consolida a partir de 1927, quando os programas de auditório, as radionovelas e o jornalismo transformam o aparelho doméstico em um verdadeiro membro da família brasileira. Durante décadas, o rádio foi o veículo que chegava onde o Estado não chegava: às casas simples, aos povoados distantes, às periferias urbanas que ainda se formavam. Antes mesmo da televisão, o rádio foi professor, promotor ideológico, companhia, consolo, entretenimento, criador de repertórios e, sobretudo, ponte para o mundo.

Os governos rapidamente perceberam o potencial do rádio como ferramenta para difusão de suas ideologias e para o fortalecimento de seus projetos políticos. Ao longo do século vinte, regimes democráticos e autoritários utilizaram esse meio de comunicação para aproximar o Estado da população, controlar narrativas, mobilizar apoio e construir uma imagem pública favorável de seus líderes. No Brasil, por exemplo, o governo de Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951-1954) transformou o rádio em instrumento central de propaganda, transmitindo mensagens que exaltavam a unidade nacional, a modernização e a figura do presidente como guia do povo.

Em diferentes contextos, o rádio serviu tanto para informar quanto para persuadir, moldando percepções e criando um ambiente comunicacional em que a voz oficial se apresentava como verdade incontestável, reforçando a capacidade do Estado de orientar opiniões e comportamentos.

No entanto, um fato é importante de ressaltar, o rádio muitas vezes se comunicou com quem tinha pouco dinheiro, pouco estudo, pouco tempo. Era o meio que traduzia a vida para os que viviam nas bordas. O rádio ensinava sotaques, letras, notícias, sonhos. Era ele que narrava o país para a maior parte da população, sendo um fomento ideológico.

Em Sergipe, essa relação tomou forma desde os anos 1940, com rádios como a Difusora (hoje Aperipê FM), Liberdade e, mais tarde, a Rádio Jornal. Cada emissora construiu um imaginário para o povo sergipano.

A programação era variada: humor, auditório, esporte, crítica, jornalismo, músicas, crônicas. Mas havia algo além: uma estética da proximidade, uma linguagem que abraçava as ruas.

Nos anos 1980 e 1990, quando o FM se expande e Aracaju vive uma urbanização acelerada, as rádios formam um ambiente poderoso de sociabilidade juvenil. É nesse contexto que surge uma figura que, para muitos, se tornou inesquecível: Joe Feitosa.

Para quem cresceu na Palestina, Augusto Franco, Bugio, São Carlos, Orlando Danta, Santa Maria, Bairro Industrial, Japãozinho, ou em qualquer periferia aracajuana, o amor, ou melhor, a possibilidade de falar sobre ele, sempre foi um território tenso. Os meninos eram ensinados a endurecer. As meninas, a se defender. O afeto era coisa escondida, sussurrada, proibida. A periferia é dura porque a vida ali cobra dureza.

E então vinha Joe Feitosa. No “Transas 98”, ele criava um espaço onde o afeto era permitido. Mais do que isso: era celebrado. As traduções que ele fazia de músicas internacionais românticas, suaves, sensíveis, davam às pessoas um vocabulário emocional que o cotidiano lhes negava.

Muitos ouvintes não tinham acesso a línguas estrangeiras, cursos de inglês, discos de vinil ou CDs importados. Mas tinham Joe Feitosa. Ele transformava letras incompreensíveis em histórias que falavam diretamente ao coração de quem o escutava. Traduzir, ali, não era apenas passar de um idioma para outro: era traduzir o mundo para quem não tinha as chaves de acesso.

Quando Joe traduzia Lionel Richie, Mariah Carey, Michael Bolton, Whitney Houston, Celine Dion, ele fazia mais do que explicar palavras; ele devolvia humanidade. As músicas falavam de paixão, saudade, encontros, desencontros, elementos comuns à vida de qualquer pessoa, mas que na periferia costumam ser abafados por urgências mais brutais: trabalho, violência, transporte, falta de oportunidades.

Se o inglês era um abismo social, Joe construía um cais. E por esse cais as pessoas entravam, pela primeira vez, não apenas nas músicas internacionais, mas também em si mesmas. Aquela voz calma, quase poética, ensinava que a vida podia ter delicadezas.

Não é exagero dizer que Joe Feitosa marcou gerações. Seu programa formou um imaginário sonoro e emocional que acompanha até hoje milhares de sergipanos que cresceram em bairros populares. Ele democratizou sentimentos, criou pertencimento, fez da tradução um gesto político de inclusão, mesmo que essa não fosse sua intenção.

Em um país onde tanto se discute elitização do acesso cultural, o trabalho de Joe é exemplo de como o rádio, pode ser uma ferramenta essencial para a democratização do sensível. Joe Feitosa não apenas traduziu músicas. Ele traduziu o amor para quem a sociedade insistia em endurecer.

Hoje, com podcasts, plataformas digitais e redes sociais, parece distante aquele tempo em que as pessoas paravam tudo para ouvir uma programação de rádio. Mas o afeto permanece.

O impacto de Joe Feitosa, na forma como ele narrava, traduzia e acolhia, permanece vivo na memória de todos nós que o escutávamos depois da escola, antes, durante e após o trabalho, nos corredores apertados da vida.

Joe Feitosa faz parte da história do rádio sergipano, sim. Mas, acima de tudo, faz parte da história afetiva de um povo.

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Jairton Peterson Rodrigues dos Santos é professor do Instituto Federal de Sergipe (IFS), mestre em Ensino de História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), e membro do NEABI.

Texto e imagem reproduzidos do site: horanews net

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