segunda-feira, 9 de abril de 2018

Entrevista com Tatiana Vasconcellos


Publicado originalmente no site Lamparina Scope, em 16/05/2016

Tatiana Vasconcellos: “Fomos educadas de acordo com padrões sociais machistas. Desconstruir isso é um processo”

Por Larissa Saram

Uma das vozes feministas mais fortes do rádio brasileiro, Tatiana Vasconcellos fala sobre direitos, desconstrução de conceitos e a série documental sobre mulheres do cinema que está preparando

Em terra de Rachel Sheherazade, quem tem Tatiana Vasconcellos respira aliviada e aumenta o som do rádio. Sim, rádio. Aquele meio de comunicação que já foi considerado obsoleto e até pouco tempo atrás amplificava as opiniões preconceituosas da âncora do Jornal do SBT, é o responsável hoje por dar voz a um discurso feminista inteligente. Os comentários da Tatiana são capazes de acabar com o tédio das tradicionais emissoras AM e com o medo de, sem querer, esbarrar com a traumática musiquinha do “Vambora, vambora”.

Os méritos da jornalista são antigos. No ar pela BandNews desde 2006, dividiu a bancada com Eduardo Barão e Ricardo Boechat durante seis anos. Com eles, ancorava o noticiário matutino, no horário nobre do rádio, e fazia o contraponto dos colegas e entrevistados que, eventualmente, tendiam para falas machistas. “Nem sempre era confortável interrompê-los, mas é necessário tentar desconstruir conceitos que são naturalizados”, disse Tatiana em entrevista para o Lamparinascope. Em março, ela assumiu o microfone do “Alta Frequência”, programa por onde passa de gente da política ao pessoal das artes. A liberdade em dizer o que pensa e defender os direitos das minorias continua.

A nossa longa conversa aconteceu por e-mail. Nela, a vencedora de três Troféu Mulher Imprensa e integrante da lista "Mulheres Inspiradoras 2015" da ONG Think Olga falou sobre trabalho, direitos e a experiência de dirigir uma série documental sobre  presença feminina no cinema.

Larissa Saram: Você sempre teve essa postura de defender a figura da mulher nas discussões, tanto no trabalho quanto em rodas de amigos?

Tatiana Vasconcellos: "Sempre" é muito tempo (risos). Não nasci feminista, ao contrário. Fomos educadas de acordo com padrões sociais machistas. A gente aprende desde pequena que tem que sentar direito, se comportar, se dar o respeito, não pode ser namoradeira e todas essas coisas que aposto que você também passou a vida ouvindo. Desconstruir isso dentro da gente é um processo. Complexo, difícil e muitas vezes lento e dolorido. Pra mim também foi e ainda é.

L.S.: Não foram raras às vezes em que eu te ouvi interrompendo seus colegas de microfone para corrigir e explicar porque alguns comentários eram equivocados.

T.V.: Nem sempre esse papel é confortável, mas é necessário tentar desconstruir alguns conceitos machistas que são naturalizados. Uma vez um colega falava da separação de um casal de atores e dizia que a responsável teria sido uma outra mulher, com quem o homem tinha se envolvido. Perguntei de quem era a "culpa" numa relação que teria acabado porque o homem, casado, se envolveu com uma outra mulher. Passamos a vida repetindo que "o pivô da separação de X e Y" foi uma segunda mulher e nem nos damos conta.

 L.S.: Até pouco tempo atrás, você era a única mulher no horário nobre do rádio. Qual era o significado desse cenário?

T.V.: Pra mim era desafiador e importante porque ainda que estejamos ancorando em todas as rádios de notícias, sinto que custa mais para as apresentadoras construírem credibilidade com os ouvintes. Pode ser algo sutil, é uma sensação. Quanto mais mulheres estiverem ali, desenvolvendo seu trabalho com seriedade, mais natural isso se torna.

L.S.: Você também organizava o quadro "Tem Mulher na Área", onde você e outras jornalistas falavam sobre futebol. Imagino que muitos ouvintes homens não curtiram muito a ideia no começo.

T.V.: Futebol é muito passional, né? O torcedor reage, às vezes desproporcional e raivosamente. Quando mulheres falam do time dele é fácil descambar pra algo misógino. No começo, chegavam mensagens machistas, sim. Quando nos mandavam pra cozinha, eu respondia dizendo que cozinhávamos muito bem, mas éramos melhores ainda falando sobre futebol (risos). Recebemos muitas mensagens de mulheres que se sentiam representadas também ou que não entendiam nada de futebol e, como nos ouviam todos os dias, passaram a ter mais interesse pelo assunto. Depois de seis anos, mulheres comentando futebol na rádio ou em qualquer outro lugar com propriedade é algo natural. Ainda tem preconceito, mas ele não nos impede de ocupar esse lugar.

 L.S.: Desde março você assumiu o microfone do “Alta Frequência. Era um desejo antigo ter um programa de entrevistas?

T.V.: Sempre gostei de conversar, sou curiosa, perguntadeira. O Alta Frequência me permite fazer isso com convidados dos mais variados segmentos. Todos os dias aprendo uma coisa nova, enxergo um ponto de vista diferente, reafirmo algumas convicções. Recentemente li uma longa entrevista de um dos fundadores da revista Rolling Stone com a escritora americana Susan Sontag e ela dizia assim: "Gosto de entrevistas. E gosto delas porque gosto de conversar, gosto do diálogo, e sei que boa parte das minhas ideias é produto da conversação. Conversar me dá a chance de saber o que penso". É isso.

"Está claro que proibir não impede milhares de mulheres de abortar. Quem tem boas condições financeiras faz aborto clandestino e seguro. E quem não tem? Morre?".

L.S.: Você é superativa no Twitter. Para mim, um dos seus posts mais maravilhosos é: "Nenhuma mulher é obrigada a ser mãe. Ninguém tem que dizer o que uma mulher deve fazer, em nenhuma situação. Já deu disso, né". O que acha dessa pressão social da mulher ter que seguir um padrão?
T.V.: Acho esse rótulo um pouco cansativo, além de um tanto invasivo. Essas são as bases em que nossa sociedade foi construída e se desenvolveu. Uma mulher separada nos anos 50 era um escândalo. Um casal gay era um escândalo. Se assumir gay era impensável. 60 anos depois é algo comum, embora parte de nossa sociedade e de nossa classe política insista em querer nos fazer viver de acordo com os costumes de 60 anos atrás. A sociedade vai mudando. Em rodas de conversas de vez em quando surge um "mas você nunca pensou em ser mãe? não quer ter filhos?". Tudo bem se eu não tiver uma resposta definitiva pra isso? (risos)

L.S.: De todos os direitos que são negados às mulheres hoje, quais te soam mais incoerentes?

T.V.: Do ponto de vista constitucional, o direito ao aborto me aprece absurdo porque a discussão se dá sobre bases fundamentalistas e religiosas e não sobre as mortes de mulheres que tentam interromper a gravidez. A UnB, Agência Ibope Inteligência e o Ministério da Saúde fizeram um estudo que constatou que 1 milhão de abortos são feitos por ano no Brasil. A cada dois dias uma mulher morre, vítima de procedimento clandestino.  Uma em cada sete brasileiras entre 18 e 39 anos já fez pelo menos um aborto na vida. Está claro que proibir não impede milhares de mulheres de abortar. Quem tem boas condições financeiras faz aborto clandestino e seguro. E quem não tem? Morre? É um problema de saúde pública grave. Para piorar, o Congresso pode aprovar a exigência de exame de corpo de delito que comprove o estupro. Violência em dobro: se isso virar lei, além de ser vítima de estupro, a mulher ainda é desacreditada e terá que provar que foi violentada.

L.S.: Realmente, é surreal!

T.V.: Isso sem falar das jovens que são proibidas de usar shorts nas escolas para evitar assédio, inclusive de professores. Seria mais eficiente e razoável combater o assédio e não o short. Mulheres advertidas ou recriminadas por amamentar seus bebês em locais públicos. Como um seio à mostra para alimentar um bebê pode ser tão ofensivo? Usar transporte público sem ser assediada deveria ser um direito. Andar na rua e não correr o risco de ser violentada deveria ser um direito. Usar a roupa que quiser sem que isso signifique um "motivo" para violência deveria ser um direito. Escolher de que maneira você quer que seu filho venha ao mundo deveria ser um direito.

"A discriminação por gênero termina onde começa a lógica econômica: se tem dinheiro pra viabilizar o negócio, o machismo não aparece".

L.S.: Já viveu alguma situação na vida em que se sentiu muito menosprezada por um homem, que ele tenha te diminuído por ser mulher? Como foi?

T.V.: Ah, é recorrente, né? Das pequenas coisas, tipo, você acaba de trocar o óleo do carro e o cara do posto diz que precisa trocar o óleo, afinal, "mulher não entende nada de carro". Fui atleta na adolescência, jogava vôlei em clube. E era boa, apesar de baixinha. Quando ia bater bola em algum lugar com meninos desconhecidos, eles me olhavam desconfiados, não davam nada, era a última a ser escolhida para o time. Quando a gente começava a jogar, eles ficavam surpresos porque eu jogava melhor que eles (risos).  

L.S.: Você é diretora de uma série documental sobre mulheres no cinema. Como está o andamento desse projeto paralelo?

T.V.: Muito no comecinho. Quero mostrar como funciona a indústria do audiovisual brasileiro do ponto de vista das mulheres. Diretoras, roteiristas, produtoras enfrentam dificuldades? Sofrem preconceito de gênero? Tem a mesma visibilidade que os homens? Ganham salários equivalentes? Já sentiram o preconceito na pele? Entrevistei algumas delas em São Paulo e no Rio de Janeiro. Uma diz que é preciso adotar um comportamento "mais masculino" no set para ser respeitada. Pelo que ouvi de uma grande produtora, a discriminação por gênero termina onde começa a lógica econômica: se tem dinheiro pra viabilizar o negócio, o machismo não aparece.

L.S.: Quem são as mulheres de hoje que te inspiram?

T.V.: Há mulheres que admiro por motivos diversos. Essa nova geração é muito forte, determinada na busca por igualdade de direitos. Entre os estudantes que ocuparam as escolas estaduais havia muitas mulheres na linha de frente das manifestações. Estudantes que se rebelam contra a determinação de escolas que proíbem short. Mulheres que estão à frente das organizações feministas, fazendo trabalhos importantes de conscientização e empoderamento.  Mulheres brilhantes e competentes do jornalismo e da comunicação. Mulheres com projeção nacional, mundial, que usam seu trabalho e sua relevância para colocar problemas em evidência, com a intenção de melhorar a sociedade e tornar o mundo menos desigual, menos violento, menos hostil e melhor têm a minha admiração.

"Ser feminista é acreditar que homens e mulheres devem ter as mesmas condições e direitos, ganhar os mesmos salários exercendo a mesma função".

L.S.: Existe alguma delas que você admire, gostaria de entrevistar e ainda não rolou?

T.V.: Eu adoraria ouvir as histórias que Patti Smith tem pra contar. Gostaria de falar sobre música com Brittany Howard, vocalista do Alabama Shakes, com a Beyoncé. Sobre cinema com a Sofia Coppola. Muitas brasileiras. Se eu citar, vou me esquecer.

L.S.: Você se considera uma feminista?

T.V.: Sim, mas não me posiciono com a intenção de ser reconhecida como uma. Ser feminista é acreditar que homens e mulheres devem ter as mesmas condições e direitos, ganhar os mesmos salários exercendo a mesma função. Mulheres não devem ser discriminadas simplesmente por serem mulheres.

Texto e imagem reproduzidos do site: lamparinascope.com

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