segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Do fonógrafo à música digital, por Marcelo Pinheiro

As radialistas Biancamaria Binazzi e Roberta Martinelli 
na loja Patuá Discos, em São Paulo.
Foto: Coil Lopes.

Publicado originalmente no site Página B, em 24/03/2017.

Do fonógrafo à música digital

Por meio de transmissões radiofônicas e plataformas online, as radialistas Biancamaria Binazzi e Roberta Martinelli difundem mais de um século de história de nossa música popular e também dão voz às produções de artistas contemporâneos.

Por Marcelo Pinheiro.  

Os caminhos das radialistas Biancamaria Binazzi e Roberta Martinelli foram cruzados há oito anos, durante uma cobertura da edição 2009 da feira de tecnologia Campus Party para a rádio Cultura AM de São Paulo. Na ocasião, eram graduandas do curso de Rádio e TV e trabalhavam na emissora pública. A paixão pela música brasileira logo aproximou a dupla com tamanha sintonia que, em setembro daquele ano, ao lado de um terceiro parceiro, o jornalista Ronaldo Evangelista, elas ousaram injetar sangue novo na programação da rádio com a criação de um programa diário intitulado Cultura Livre, voltado à difusão do trabalho de intérpretes e compositores contemporâneos. No entanto, pouco antes de a atração ir ao ar,  Biancamaria e Evangelista saíram da emissora. Desde então, Roberta, que já foi atriz, estudou Direito, mas abandonou o curso no quarto ano, assumiu o comando do Cultura Livre. Em 2010, com o sucesso de transmissões simultâneas na Internet, por meio da câmera de um celular, o programa foi transferido para a grade da TV Cultura. Com exibições semanais, já recebeu mais de 300 bandas e artistas em carreira solo.

Em entrevista à CULTURA!Brasileiros, Bianca­­maria relembrou um episódio ocorrido durante a Campus Party, que, segundo ela, foi inspirador para o trio de amigos. Gilberto Gil, então ministro da Cultura, passou por ela, que estava ao vivo, e a repórter decidiu perguntar: “Gil, estamos num evento de tecnologia de ponta, discutindo robótica, banda larga, ao mesmo tempo  que estamos falando numa rádio AM. Você, que foi descoberto no rádio, viveu a era dos festivais, cantou o rádio e agora canta a banda larga, acha que o rádio vai morrer com a Internet?”. A pergunta era fatalista, mas foi respondida com a sabedoria usual de Gil, que ponderou: “Calma, filha… O rádio é o pai e o filho da Internet. A Internet veio para salvar o rádio. Com a Internet, o rádio vai renascer”.

Como previu o bom baiano, a tecnologia digital reinventou hábitos dos ouvintes, vide o sucesso de plataformas de streaming como ITunes, Spotify e Deezer, e outros meios eletrônicos que também abriram novas possibilidades para Biancamaria e Roberta. Atualmente, mesmo distantes profissionalmente, as duas amigas mantêm em comum a pesquisa contínua e a difusão de seus garimpos para um público cada vez maior. Biancamaria, que compila suas pesquisas no site do projeto Goma-Laca, tocado a quatro mãos com Evangelista, concentra suas investigações sobretudo nos discos de 78rpm (rotações por minuto) lançados desde a criação da indústria fonográfica no País, em 1902. De olhos e ouvidos atentos para a música do presente – e do passado recente –, Roberta segue em busca de trabalhos de artistas contemporâneos, que são reverberados no Cultura Livre e também mistura o cancioneiro atual com preciosidades da MPB no Som a Pino, programa veiculado diariamente desde julho de 2016, das 12h às 13h, na rádio Eldorado FM, de São Paulo.

A seguir, reunimos em depoimentos temáticos os melhores momentos das conversas com as duas radialistas.

Evoé, jovens à vista

Quando eu tinha 9 anos, passei a estudar música em uma escola que ficava ao lado do colégio onde iniciei meus estudos. Foi aí que nasceu minha paixão pela música. Numa apresentação de fim de ano a gente tocou Paratodos, do Chico Buarque, e lembro que, para mim, a maioria daqueles nomes de artistas mencionados na letra não significava nada. Lembro também a professora dizer: “Vocês ouviram? A música termina com a frase ‘evoé, jovens à vista!’, ou seja, é um recado para vocês. Fiquei com aquilo na cabeça. Quando essa escola fechou, eu tive uma grande mestra, Neide Rochlitz. Na casa dela estudei piano e flauta transversal, e ela também me deu vários discos para ouvir, como o Chega de Saudade, do João Gilberto, com a recomendação: “Ouça, porque esse disco revolucionou a música brasileira”.

Oneyda Alvarenga

Em 2004, fui chamada para trabalhar como estagiária no Centro Cultural São Paulo (CCSP). Uma pessoa que abriu muitas portas para mim foi Márcio Yonamine, que tinha acabado de assumir a direção da rádio do CCSP. Como ele era ligado em tecnologia, quis entrar naquela onda inicial de webradios, mas estava em dúvida sobre o que incluir na programação. Sugeri colocarmos as bandas que estavam tocando no CCSP, ele aceitou a dica e devolveu outra: “Ah, temos também o acervo da Oneyda Alvarenga (a discoteca fundada por Mário de Andrade, em 1935, e batizada em homenagem à jornalista e folclorista, morta em 1984). Acho que pode te interessar”. Foi mágico! Foi lá que comecei a me interessar pelos discos de 78rpm e, por causa dessas primeiras pesquisas, fui chamada para participar de um programa da rádio do CCSP, o Vitrola Nova. Depois, propus um programa em que eu convidava jovens artistas para falar de suas influências. Foi meu primeiro filhote. Dei o nome de Crônicas de Toca-Discos.

Mário de Andrade

Na discoteca do CCSP tinha uma cópia do livro Cartas, da Oneyda Alvarenga, que reúne algumas correspondências trocadas por ela e Mário de Andrade. Com essa pesquisa, ficou claro para mim como foi importante, num momento em que a indústria estava nascendo no Brasil, Mário querer construir uma discoteca básica, algo que tem a ver com o que a gente faz, que é juntar rádio e acervo. Ele sempre esteve à frente. Procurou entender o Brasil com respeito, porque queria mudar o País por meio da educação musical.

Goma-Laca

Quando eu e Ronaldo saímos da Cultura, voltamos a frequentar a discoteca do CCSP. Como sabíamos que 2011 marcaria o centenário de nascimento da Oneyda, propusemos fazer um show com releituras de músicas de sua discoteca. Foi aí que nasceu o projeto Goma-Laca (o nome faz alusão à matéria-prima utilizada na confecção dos discos de 78rpm). O show reuniu artistas como Emicida, Luisa Maita e Sambanzo. Depois, tivemos a ideia de fazer um site para reunir em um mesmo espaço tudo que a gente gosta: programas de rádio, publicar textos, dividir leituras, falar de shows e discos. Com essas novas pesquisas, tivemos acesso a uma música etnográfica que também entrou na indústria. Claro, tudo isso foi muito bem documentado pelo Mário, mas também passou por outros “mários”, como, por exemplo, a Inezita Barroso e a  cantora e atriz  Vanja Orico.

Rodas de escuta

Faço muitas rodas de escuta. Fiz algumas pelo Goma-Laca, mas no final do ano passado realizei alguns encontros sozinha, na Casa Mário de Andrade (oficina cultural paulistana sediada em um imóvel onde o modernista morou), num projeto chamado Gira Disco. Um deles, muito especial, foi uma audição dos discos da série Native Brazilian Music, dirigida pelo maestro Leopold Stokowski, que são muito raros. A coleção foi lançada nos Estados Unidos com a intenção folclórica de retratar a música dos “nativos brasileiros”, mas, nela, existem falhas graves, como nomes de canções que foram trocados e músicos não creditados, como Cartola e Pixinguinha. Desde que entrei para esse mundo dos colecionadores, conheci muita gente boa. Por exemplo, Claudevan Mello é de Alagoas e faz uma pesquisa restrita à música do seu estado. Quando ele soube que o Jararaca, seu conterrâneo, estava nesse disco, não sossegou até achar uma cópia. Na segunda edição desse encontro, chamado Gira Disco, convidei o colecionador Gilberto Gonçalves para contar a Pequena História do Disco em 78 rpm. Tocamos gravações feitas para os fonógrafos de cilindro (aparelho de reprodução do final do século XIX), depois explicamos a fase elétrica, a fase mecânica, ou seja, contamos a história da música brasileira por meio de seus suportes.

Brasil/EUA

Comecei a fazer meu mestrado no IEB (Instituto de Estudos Brasileiro s da Universidade de São Paulo) no meio do ano passado. Estou pesquisando o intercâmbio musical que aconteceu entre o Brasil e os Estados Unidos no contexto da Política da Boa Vizinhança, entre 1938 e 1945. A intenção dos americanos era boa, mas houve, por exemplo, iniciativas como o disco Native Brazilian Music, que você pode amar e odiar. Amar, pela sua preciosa qualidade musical, e odiar, pelo descaso da produção com a identidade e remuneração dos artistas brasileiros. Por outro lado, com o projeto da Missão de Pesquisas Folclóricas, Mário teria se beneficiado com o intercâmbio. Em tempos de Getúlio Vargas, ele estava afastado do Departamento de Cultura e os recém gravados discos da Missão corriam o risco de serem arquivados como “entulho”. A Biblioteca do Congresso em Washington, interessada em cópias desse material, enviou caríssimos discos virgens da época para que as matrizes fossem preservadas. Viajo em fevereiro para os EUA para participar de uma conferência de bibliotecas de música em Orlando, mas também terei a felicidade de fazer dois dias de imersão no acervo da Biblioteca do Congresso

Vanja Orico

O grande prazer dessas pesquisas é descobrir algo que você não conhecia, que é bonito e que toca as pessoas, como ouvir a Vanja Orico cantando Sodade, Meu Bem, Sodade em um velho disco de 78rpm. Quando fizemos o álbum do Goma-Laca, tive a felicidade de mostrar esse e outros registros para ela. Vanja estava debilitada, com Alzheimer avançado, e me disseram: “Você não vai conseguir entrevistá-la, porque ela não está mais falando”. Levei uma vitrola, coloquei os fones no ouvido dela e disse: “Dona Vanja, quero regravar essa música sua com novos artistas”. Para nossa surpresa, ela começou a cantarolar, “acordou” com a música. Pouco depois veio o show, e no momento em que a Karina Buhr foi apresentar a versão de Minervina fui surpreendida com a plateia cantando junto com ela. É muito bonito ver a coisa se transformar pelo coração das pessoas.

Música no DNA do Brasil

Outro dia eu estava no metrô, aquele silêncio, e entrou um menino que começou a tocar Juazeiro, do Luiz Gonzaga, no violino, acompanhado de sua namorada. Todo mundo ficou com os olhos brilhando. A aparição agradou uma velhinha, da mesma forma que agradou um menino punk, porque a música do Gonzagão está no DNA das pessoas. É preciso dar condições para que elas entendam o quanto a música é importante para o tempo que se vive. Veja, por exemplo, o quanto as composições do Kiko Dinucci podem ser consideradas uma busca etnográfica. Daqui a 50 anos, alguém vai ouvir suas canções e dizer: “Entendo como era a São Paulo de 2017”. A música é uma expressão do artista e do seu tempo e, mesmo com um “calinho” no ouvido para as coisas mais antigas, tenho orgulho de fazer parte da nossa geração.

Do rádio para a TV

No começo do Cultura Livre tive um pouco de pânico, porque fazia o programa na rádio AM e, como não havia transmissão simultânea pela Internet, me dava uma certa aflição pensar se havia mesmo alguém do lado de lá. Nessa época, o Facebook estava começando a pegar no Brasil e meu namorado, Pedro, sugeriu usar a rede social para divulgar o programa. Foi então que descobri, por meio de transmissões no Tweetcam (plataforma audiovisual do Twitter), que havia sim alguém do outro lado. A Tiê fez uma das primeiras participações, mas, nesse dia, a conexão com a Internet começou a cair. Por conta disso, para amenizar os cortes, fizemos cartazes para falar com as pessoas que não conseguiam acompanhar o programa online, mas que, aos poucos, iam vendo as fotos e curtindo. Veio daí uma das características do Cultura Livre, pois até hoje uso placas manuscritas para anunciar o artista do dia e as canções que serão apresentadas. Em 2010, a direção da Cultura decidiu fazer o programa em um estúdio de rádio onde também coubessem câmeras. Fomos para o teatro Franco Zampari, que serviu de estúdio para o Ensaio, do Fernando Faro, e também para os programas da Inezita Barroso. Para mim, uma honra. Neste mês de março, entra em cartaz a oitava temporada do programa.

Som a pino

No meio do ano passado, recebi um e-mail do Emanuel Bomfim, que tinha assumido parte da programação da rádio Eldorado. Ele e o Luís Fernando Bovo, que é chefe-geral da emissora, me convidaram para almoçar e propuseram que eu fizesse um programa diário, de uma hora, só com música brasileira. Aceitei, mas combinamos que eu teria total autonomia para fazer as coisas da minha maneira. Comecei o Som a Pino em julho e, desde o começo, pude perceber que o programa é um novo mundo. No Cultura Livre falo para um público específico. São pessoas que sabem o que estão buscando quando acessam uma emissora pública com o perfil da Cultura, mais educativo e que tem sempre coisas que não são ouvidas em outras emissoras. Na Eldorado comecei a interferir num horário em que as pessoas estão em trânsito, e logo saquei que seria legal misturar músicas novas com outras mais antigas. Deu certo, porque uma coisa acaba fortalecendo a outra.

Laboratório

Minha pesquisa é bem diferente da que a Biancamaria faz, que é mais centrada em acervos. Minhas descobertas vêm no dia a dia. Desde que assumi o comando do Cultura Livre, passei a fazer da música o motivo maior da minha vida. Frequento todos os shows e espaços possíveis. Obviamente não dá para ver tudo, mas o que não consigo ver no palco ouço em canais de streaming. Para o Cultura Livre é essencial saber o comportamento do artista ao vivo. No Som a Pino é diferente, basta escolher uma música boa do disco para valer a recomendação. Estou há muito tempo nessa, mas não gosto de sentir que estou fazendo algo de forma mecânica. É bem difícil também manter o distanciamento com os artistas. Uma vez me perguntaram: “Você só toca aquilo que gosta?”. Não. Não toco só o que gosto, porque não tenho a pretensão de reduzir a música brasileira ao meu gosto. Tem coisas que não escuto em casa, mas que eu sei que são importantes e que precisam ser tocadas.

O novo sempre vem

A música brasileira vai bem, obrigado. No ano passado tivemos esse movimento forte de discussão de gênero e surgiram vários artistas com essa postura. Claro, muitas vezes as pessoas vêm com um discurso mais forte do que sua música, mas acho que muitos artistas começam assim e depois evoluem em suas escolhas estéticas. Não é à toa, por exemplo, que a Liniker tem milhões de fãs vendo seus vídeos no YouTube. A performance dela no palco ou a voz dela podem não trazer grandes evoluções musicais, mas o que importa é que ela se impõe com muita personalidade mesmo tendo só 21 anos. Acho que a Liniker contribui para, de alguma forma, mudar a vida de muita gente que se identifica com ela. Essa turma veio derrubar várias teorias. A canção, por exemplo, que foi considerada à beira da morte no começo dos anos 2000, voltou com tudo. Hoje, no Brasil, temos centenas de boas canções novas, muita música autoral, um monte de compositoras. Para mim, é uma delícia ver tudo isso de perto. O fato de o Cultura Livre ter nascido nessa época e ter permanecido é um reflexo do bom trabalho que esses artistas estão fazendo. Também me orgulho de pensar que o Cultura Livre é um programa único na televisão brasileira. Infelizmente, não há nenhum outro espaço para a música na TV aberta. Claro, existem os reality shows, como The Voice e Superstar, que são chamados de programa musical, mas que, para mim, não são.

Patrulha estética

Já julguei muito, mas acho que essa nova geração me ensinou inclusive a pensar muito antes de fazer isso, porque ela está muito mais aberta a todo tipo de experiência musical. Anitta, por exemplo. Mesmo que você diga que ela é uma construção da indústria fonográfica, é óbvio que ela tem seus méritos. Ela canta e dança superbem, e não sou eu que vou julgar o que ela faz. Esses dias fui ver o documentário Axé: a Força de Um Povo (filme recém-lançado, de Chico Kertész) e saí do cinema com a impressão de que o axé foi um movimento genuíno, mas, claro, veio depois um investimento enorme das gravadoras que acabou deixando a música baiana presa ao gênero e sufocou outros artistas de lá. Claro, é importante que também exista a música comercial, porque há espaço para todo mundo conviver, mas seria legal se as chamadas barreiras entre o indie e o mainstream não fossem tão gigantes.

Colunista

Ultimamente escrever para o Estadão tem me causado frio na barriga (desde outubro de 2016, Roberta assina uma coluna semanal no jornal O Estado de S.Paulo). Não quero parecer a “diferentona”, mas sempre fiz rádio e TV à minha maneira, de um jeito bem despojado, intuitivo, como se estivesse fazendo um programa em casa. Quando me chamaram para escrever no jornal, fiquei pensando se deveria aceitar o convite. Para mim, não parecia fazer muito sentido manter uma coluna em primeira pessoa justamente quando todos querem escrever e opinar sobre tudo. Comecei dando umas notinhas, falando de shows que vi, de discos que ouvi, e percebi que quando eu desenvolvo reflexões sobre a música a resposta dos leitores é sempre melhor. Por outro lado, algo que não consigo entender são críticas carregadas de ódio, como as que vieram quando escrevi, em uma breve retrospectiva de 2016, que uma das coisas lamentáveis do ano passado foi a hostilidade contra Chico Buarque, quando ele sofreu aqueles ataques no Leblon. Dias depois, tinha até gente desejando minha morte. Esse comportamento é um reflexo do mundo e deste Brasil que a gente vive hoje. No ano passado, principalmente com o fim temporário do Ministério da Cultura, cresceu muito esse discurso de que artista gosta mesmo é de mamar na teta do governo, uma coisa horrorosa, que não faz sentido. As pessoas precisam mesmo é entender que o acesso à cultura é tão importante quanto o acesso à saúde e à educação. Acho que um dano muito grande dessa polarização que tomou conta do Brasil foi, por exemplo, colocar na cabeça das pessoas que artista é vagabundo.

Texto e imagem reproduzidos do site:
paginab.com.br/do-fonografo-musica-digital

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