segunda-feira, 2 de setembro de 2013

A Magia do Rádio


A Magia do Rádio 
 Por Petrônio Gomes

Desde criança, habituei-me a ouvir rádio por uma questão de companhia, pois minha infância e juventude foram, de certo modo, solitárias. Minhas primeiras lembranças a respeito estão ligadas a um receptor “Mullard”, alimentado por válvulas elétricas, que o meu pai de criação Theodulo Cruz ligava todas as noites depois do café. Lembro-me até de como ele o desligava na hora de dormir, cobrindo-o com uma capa de flanela...

Datam dessa época os sambas acompanhados por “regionais”, isto é, conjuntos musicais compostos de violões, cavaquinho, clarineta, pandeiro e, muito raramente, violino. Aracy de Almeida, “Almirante” e Patrício Teixeira terão sido os nomes que ficaram gravados em minha memória, com “Ai, ai meu Deus” de Aracy, uma marchinha carnavalesca de Almirante e “Sabiá Laranjeira” de Patrício. Muitos anos depois, já homem feito, conheci a velha Aracy no Rio de Janeiro, na porta do Cinema Trianon. Era apelidada “Dama da Central”. Feia de rosto, desengonçada e gorda, mas dona de uma voz chorosa que lhe valeu milhares de discos vendidos. “Almirante” tinha este nome porque foi remador de regatas de um clube carioca em sua mocidade. E Patrício Teixeira tinha também a voz de lamento de Aracy, mas era um cantor de sucesso.

Quando a Rádio Aperipê surgiu em Aracaju, numa dependência do Serigy, tendo sido a primeira a possuir um auditório, resolvi cantar em um programa de calouros comandado por Alfredo Gomes. Saí do colégio depois da última aula e fui para lá. Miguel tocava clarineta nesse regional e deu a introdução de “Luar de Paquetá” em um tom acima de minha capacidade. Fui devidamente gongado...

Mas o feitiço do rádio já havia tomado conta de mim. Eu lembrava o modo de falar de César Ladeira, o gaúcho que casou com Renata Fronzi, uma cantora de revista Argentina e que depois apareceu em várias novelas. Talvez César Ladeira tenha sido o mais famoso locutor do Brasil na época. Foi ele que “imortalizou” o calçado “Scatamachia”, só com sua maneira de pronunciar sílaba por sílaba a marca dos sapatos lançada em São Paulo.

Depois de César, Heron Domingues, César de Alencar, este, um animador de auditório, um dos pioneiros. Eram pessoas que figuravam em todos os comentários, pois não havia televisão, e o cinema era um passatempo que só tinha graça aos domingos.

Quando viajei para o Rio, decidido a ficar por lá, o rádio ainda morava na minha cabeça, mas dessa vez eu tinha a cidade onde tudo o que eu imaginava acontecia, ou deveria acontecer. Fui para a Rádio Nacional, no último andar do Edifício da Noite, na Praça Mauá. E lá conheci Nuno Roland, Heloisa Helena, a apresentadora de muitos programas famosos. Havia um café no andar térreo do edifício, onde todos os artistas se encontravam para os costumeiros bate-papos.

Fui companheiro de bonde de Carlos Galhardo, Gilberto Alves. O primeiro era aluno de canto no Conservatório do Rio de Janeiro e para lá seguia no mesmo horário em que eu viajava.

Antes de dormir, quando já os meus irmãos estavam passando do terceiro sono, eu ligava baixinho um rádio que papai nos havia dado, um “Phillips” holandês, também de válvulas, é claro. E esperava o programa de Vera Brito, a “Hora do Chile”, uma delícia de audição! Vera Brito havia residido no Chile por muitos anos e trouxera para o Brasil uma coleção de discos com músicas regionais daquele país, que ela havia percorrido de ponta a ponta. As suas descrições sobre o Chile, e, sobretudo, a sua voz de acalanto, eram uma obrigação para mim.

Pois bem. Dez anos depois de minha ida para o Rio, regressei a Aracaju, agora pai de família, funcionário do Banco do Brasil. E a mania do rádio continuava firme. Com o longo tempo de ausência, era natural que não mais conhecesse os que se encontravam nessa profissão. Mas assisti à inauguração da Rádio Cultura de Sergipe, bem como fui o acompanhante fiel dos primeiros e bons programas, aqueles que marcaram com seu entusiasmo a estréia de ouro da querida emissora.

Alguns anos depois, fui apresentado ao sr. Pedro Bastos, então diretor da Cultura. Aos domingos, o sr. Pedro Bastos costumava freqüentar o Iate Clube, também meu lugar de recreio. Perguntei-lhe se poderia contar com um horário aos domingos para um programa a ser escrito. Ele me respondeu imediatamente que não haveria problema. “Quantas horas quer ?” Fiquei estupefato com esta pergunta, pois na verdade eu não esperava sequer a possibilidade de conseguir. “Duas horas, sr. Pedro”, respondi. E ele me prometeu o horário das 8 às 10 da manhã aos domingos, a começar quinze dias depois!

Eu não havia escolhido nem o nome do programa, como também não tinha o menor conhecimento do que significam duas horas produzidas para uma apresentação radiofônica. Voltei para casa com o mesmo contentamento de alguém que recebe um prêmio ou uma notícia impagável. Agora, além da mania de ouvir rádio, eu tinha a responsabilidade de um programa. As grandes preocupações nos tiram o apetite, mas as alegrias também costumam fazer o mesmo. Daquele momento em diante, meu pensamento estava unicamente no modo como cumprir meu intento.

Carlos Magalhães apresentava um programa intitulado “Semanário Dominical Cultura”. Era uma resenha dos principais acontecimentos da semana, ocorridos em Sergipe e no Brasil. A matéria era colhida no próprio arquivo da emissora, cujo departamento de jornalismo estava a todo vapor.Esse programa de Magalhães já havia saído do ar por algum motivo. Pensei, então, numa apresentação mais elaborada dentro da mesma linha, com um acréscimo que pudesse abranger as duas horas prometidas. Seria, portanto, uma revista de acontecimentos, mas não dos acontecimentos já participados ao público, e sim dos fatos curiosos que os jornais costumam inserir em seus espaços problemáticos.

Pedi ao Dermeval Gomes que gravasse esta “chamada”:
“A Rádio Cultura, neste horário, passa a apresentar: RADIO REVISTA – o programa que está na agenda da cidade inteira. RÁDIO REVISTA – As notícias que nem todos leram, escondidas nas páginas internas; RÁDIO REVISTA – a música escolhida com carinho.”

Para ´preencher o horário, estabeleci no meio do programa uma crônica, e, logo a seguir, perguntas sobre conhecimentos gerais, com prêmios aos ouvintes que respondessem. Dermeval Gomes foi o apresentador de três programas escritos por mim. Certa vez, ele não chegou a tempo e Irandi Santos sugeriu que eu próprio enfrentasse o microfone.

Entrei para o estúdio, molhado de suor. É incrível a intimidação de um microfone solitário numa sala fechada! O controlador de som apontou para cima através do vidro de divisão, mostrando-me uma lâmpada, ao mesmo tempo em que fez um sinal estranho. De repente, a lâmpada ficou vermelha. Era o minuto certo. Ele levantou os braços para mim. E comecei a falar.

A próxima vez já não foi tão angustiante, e meu nervosismo foi aos poucos desaparecendo. Mesmo assim, ainda hoje não me sinto à vontade para falar sem um texto nas mãos, ao contrario do dr. José Maria Rodrigues Santos, meu grande amigo de infância, já desaparecido, que apresentava seus programas como se estivesse batendo um papo qualquer.

Mas as cartas começaram a chegar, algumas comoventes, até. Em Itabaiana, onde a audição ao programa era também maciça, a segunda parte dedicada às perguntas e respostas era motivo de apostas ferrenhas. Segundo me disseram.

Desejaria incluir neste depoimento a narração de três fatos ocorridos em virtude da audição de Rádio Revista, pois o reconhecimento do público constitui, por si apenas, o melhor salário daqueles que fazem do seu trabalho de divulgação um compromisso de amor.

Primeiro - Certa manhã, durante um expediente no Banco do Brasil, fui chamado da sala onde trabalhava para atender a umas pessoas que me procuravam. Desci ao primeiro pavimento e lá encontrei um grupo. Era uma família inteira: um senhor esposa, seus filhos e uma anciã que me foi apresentada como genitora do cavalheiro. Pobremente vestidos, fisionomias coradas de camponeses, traziam no rosto um ar repousante de uma alegria ingênua que achei bonito. Vinham de uma cidade longínqua do interior, cujo nome não me vem à lembrança, e desejariam apenas conhecer-me. Fiz menção de oferecer-lhes um café, pedir-lhes que se sentassem um pouco, mas não aceitaram. A razão era que deveriam voltar dentro de dez minutos...

Segundo - Eu regressava a Aracaju com meu filho, ainda pequeno, num sábado à noite. Com o pensamento distante, ouvindo o rádio do carro, não percebi que passava pelo posto da Polícia Rodoviária, cujo plantonista fez acionar a sirena da sua moto imediatamente. Encostei o veículo e aguardei que ele chegasse até nós. Ele me pediu que recuasse até o seu local de trabalho. Em seguida, solicitou-me a apresentação dos documentos. Leu e releu uma página e me disse: “Sua carteira está vencida. Pelo que tenho aqui, o senhor poderia ser convidado a deixar o carro conosco, mas acontece que amanhá é domingo e todos nós ouvimos o seu programa. Quando chegar em Aracaju, providencie outro documento.” Seus companheiros também vieram para um aperto de mão que me comoveu.

Terceiro - Certo dia, encontrei em um jornal do sul uma notícia singular. Era falava do Dia das Comunidades Portuguesas no Mundo, em 10 de junho, e como uma comemoração diferente, o Governo de Portugal estava enviando uma mensagem alusiva à data, escrita em cinco idiomas: português, francês, inglês, alemão e espanhol, com os seguintes dizeres:

“Oh mar salgado, quanto do teu sal
são lágrimas de Portugal”
O último apelo, escrito com sangue, a única esperança, redigida com estrelas, dos que se viam em riscos de naufrágio e morte.
Esta garrafa ao mar é, pelo contrário, uma afirmação plena de vida, uma mensagem de amor que Portugal envia ao mundo, desejando paz e felicidade a todos os homens da terra de todas as latitudes e idiomas, de todas as raças e credos, abraçando-os por igual ao coração.”

Esta mensagem, aliás, um certo número desta mesma mensagem, escrita em cinco línguas, foi colocada em garrafas especiais e lançadas ao mar. O texto jornalístico adiantava ainda o seguinte :”Portugal oferecia uma passagem aérea à pessoa que encontrasse uma dessas garrafas e a encaminhasse ao cônsul de Portugal de sua cidade.” Não parece uma história de fadas ?

Pois bem. Li esta notícia no programa Rádio Revista. Cerca de uns vinte dias depois, outro ouvinte apareceu lá no Banco querendo falar comigo. Sem mais delongas, entregou-me uma das mensagens que havia encontrado na Atalaia Nova !

Recebi o texto, sem acreditar no que via. “O senhor disse que há um prêmio para a pessoa que tiver encontrado isso. Mas sou um pescador e não tenho condições de viajar. Quero que o senhor viaje por mim.”

Ainda tenho comigo esta relíquia de Rádio Revista, como tenho ainda no coração muitos outros casos. Quando fazemos uma coisa por amor, não podemos jamais perder. A recompensa virá, de um modo ou de outro, mas nunca falta. No caso do rádio, o segredo é considerar o microfone com uma pessoa de fato, uma pessoa que não conhecemos e que transmite dignidade, a quem devemos tratar com respeito.

NOTA: Este depoimento foi por mim prestado na Universidade Federal de Sergipe por ocasião do Primeiro Seminário de Rádio, a convite do Professor e jornalista Luciano Correia, em 18 de julho de 2002. Está inserido neste livro em atendimento a alguns professores da Universidade então presentes.

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE,
 em  1 de agosto de 2013, feita pelo membro Gabriel de Andrade Gomes. 

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