A Magia do Rádio
Desde criança, habituei-me a ouvir rádio por uma questão de
companhia, pois minha infância e juventude foram, de certo modo, solitárias.
Minhas primeiras lembranças a respeito estão ligadas a um receptor “Mullard”,
alimentado por válvulas elétricas, que o meu pai de criação Theodulo Cruz
ligava todas as noites depois do café. Lembro-me até de como ele o desligava na
hora de dormir, cobrindo-o com uma capa de flanela...
Datam dessa época os sambas acompanhados por “regionais”,
isto é, conjuntos musicais compostos de violões, cavaquinho, clarineta,
pandeiro e, muito raramente, violino. Aracy de Almeida, “Almirante” e Patrício
Teixeira terão sido os nomes que ficaram gravados em minha memória, com “Ai, ai
meu Deus” de Aracy, uma marchinha carnavalesca de Almirante e “Sabiá
Laranjeira” de Patrício. Muitos anos depois, já homem feito, conheci a velha
Aracy no Rio de Janeiro, na porta do Cinema Trianon. Era apelidada “Dama da
Central”. Feia de rosto, desengonçada e gorda, mas dona de uma voz chorosa que
lhe valeu milhares de discos vendidos. “Almirante” tinha este nome porque foi
remador de regatas de um clube carioca em sua mocidade. E Patrício Teixeira
tinha também a voz de lamento de Aracy, mas era um cantor de sucesso.
Quando a Rádio Aperipê surgiu em Aracaju, numa dependência
do Serigy, tendo sido a primeira a possuir um auditório, resolvi cantar em um
programa de calouros comandado por Alfredo Gomes. Saí do colégio depois da
última aula e fui para lá. Miguel tocava clarineta nesse regional e deu a
introdução de “Luar de Paquetá” em um tom acima de minha capacidade. Fui
devidamente gongado...
Mas o feitiço do rádio já havia tomado conta de mim. Eu
lembrava o modo de falar de César Ladeira, o gaúcho que casou com Renata
Fronzi, uma cantora de revista Argentina e que depois apareceu em várias
novelas. Talvez César Ladeira tenha sido o mais famoso locutor do Brasil na
época. Foi ele que “imortalizou” o calçado “Scatamachia”, só com sua maneira de
pronunciar sílaba por sílaba a marca dos sapatos lançada em São Paulo.
Depois de César, Heron Domingues, César de Alencar, este, um
animador de auditório, um dos pioneiros. Eram pessoas que figuravam em todos os
comentários, pois não havia televisão, e o cinema era um passatempo que só
tinha graça aos domingos.
Quando viajei para o Rio, decidido a ficar por lá, o rádio
ainda morava na minha cabeça, mas dessa vez eu tinha a cidade onde tudo o que
eu imaginava acontecia, ou deveria acontecer. Fui para a Rádio Nacional, no
último andar do Edifício da Noite, na Praça Mauá. E lá conheci Nuno Roland,
Heloisa Helena, a apresentadora de muitos programas famosos. Havia um café no
andar térreo do edifício, onde todos os artistas se encontravam para os
costumeiros bate-papos.
Fui companheiro de bonde de Carlos Galhardo, Gilberto Alves.
O primeiro era aluno de canto no Conservatório do Rio de Janeiro e para lá
seguia no mesmo horário em que eu viajava.
Antes de dormir, quando já os meus irmãos estavam passando
do terceiro sono, eu ligava baixinho um rádio que papai nos havia dado, um
“Phillips” holandês, também de válvulas, é claro. E esperava o programa de Vera
Brito, a “Hora do Chile”, uma delícia de audição! Vera Brito havia residido no
Chile por muitos anos e trouxera para o Brasil uma coleção de discos com
músicas regionais daquele país, que ela havia percorrido de ponta a ponta. As
suas descrições sobre o Chile, e, sobretudo, a sua voz de acalanto, eram uma
obrigação para mim.
Pois bem. Dez anos depois de minha ida para o Rio, regressei
a Aracaju, agora pai de família, funcionário do Banco do Brasil. E a mania do
rádio continuava firme. Com o longo tempo de ausência, era natural que não mais
conhecesse os que se encontravam nessa profissão. Mas assisti à inauguração da
Rádio Cultura de Sergipe, bem como fui o acompanhante fiel dos primeiros e bons
programas, aqueles que marcaram com seu entusiasmo a estréia de ouro da querida
emissora.
Alguns anos depois, fui apresentado ao sr. Pedro Bastos,
então diretor da Cultura. Aos domingos, o sr. Pedro Bastos costumava freqüentar
o Iate Clube, também meu lugar de recreio. Perguntei-lhe se poderia contar com
um horário aos domingos para um programa a ser escrito. Ele me respondeu
imediatamente que não haveria problema. “Quantas horas quer ?” Fiquei
estupefato com esta pergunta, pois na verdade eu não esperava sequer a
possibilidade de conseguir. “Duas horas, sr. Pedro”, respondi. E ele me
prometeu o horário das 8 às 10 da manhã aos domingos, a começar quinze dias
depois!
Eu não havia escolhido nem o nome do programa, como também
não tinha o menor conhecimento do que significam duas horas produzidas para uma
apresentação radiofônica. Voltei para casa com o mesmo contentamento de alguém
que recebe um prêmio ou uma notícia impagável. Agora, além da mania de ouvir
rádio, eu tinha a responsabilidade de um programa. As grandes preocupações nos
tiram o apetite, mas as alegrias também costumam fazer o mesmo. Daquele momento
em diante, meu pensamento estava unicamente no modo como cumprir meu intento.
Carlos Magalhães apresentava um programa intitulado
“Semanário Dominical Cultura”. Era uma resenha dos principais acontecimentos da
semana, ocorridos em Sergipe e no Brasil. A matéria era colhida no próprio
arquivo da emissora, cujo departamento de jornalismo estava a todo vapor.Esse
programa de Magalhães já havia saído do ar por algum motivo. Pensei, então,
numa apresentação mais elaborada dentro da mesma linha, com um acréscimo que
pudesse abranger as duas horas prometidas. Seria, portanto, uma revista de
acontecimentos, mas não dos acontecimentos já participados ao público, e sim
dos fatos curiosos que os jornais costumam inserir em seus espaços
problemáticos.
Pedi ao Dermeval Gomes que gravasse esta “chamada”:
“A Rádio Cultura, neste horário, passa a apresentar: RADIO
REVISTA – o programa que está na agenda da cidade inteira. RÁDIO REVISTA – As
notícias que nem todos leram, escondidas nas páginas internas; RÁDIO REVISTA –
a música escolhida com carinho.”
Para ´preencher o horário, estabeleci no meio do programa
uma crônica, e, logo a seguir, perguntas sobre conhecimentos gerais, com
prêmios aos ouvintes que respondessem. Dermeval Gomes foi o apresentador de
três programas escritos por mim. Certa vez, ele não chegou a tempo e Irandi
Santos sugeriu que eu próprio enfrentasse o microfone.
Entrei para o estúdio, molhado de suor. É incrível a
intimidação de um microfone solitário numa sala fechada! O controlador de som
apontou para cima através do vidro de divisão, mostrando-me uma lâmpada, ao
mesmo tempo em que fez um sinal estranho. De repente, a lâmpada ficou vermelha.
Era o minuto certo. Ele levantou os braços para mim. E comecei a falar.
A próxima vez já não foi tão angustiante, e meu nervosismo
foi aos poucos desaparecendo. Mesmo assim, ainda hoje não me sinto à vontade
para falar sem um texto nas mãos, ao contrario do dr. José Maria Rodrigues
Santos, meu grande amigo de infância, já desaparecido, que apresentava seus
programas como se estivesse batendo um papo qualquer.
Mas as cartas começaram a chegar, algumas comoventes, até.
Em Itabaiana, onde a audição ao programa era também maciça, a segunda parte
dedicada às perguntas e respostas era motivo de apostas ferrenhas. Segundo me
disseram.
Desejaria incluir neste depoimento a narração de três fatos
ocorridos em virtude da audição de Rádio Revista, pois o reconhecimento do
público constitui, por si apenas, o melhor salário daqueles que fazem do seu
trabalho de divulgação um compromisso de amor.
Primeiro - Certa manhã, durante um expediente no Banco do
Brasil, fui chamado da sala onde trabalhava para atender a umas pessoas que me
procuravam. Desci ao primeiro pavimento e lá encontrei um grupo. Era uma
família inteira: um senhor esposa, seus filhos e uma anciã que me foi
apresentada como genitora do cavalheiro. Pobremente vestidos, fisionomias
coradas de camponeses, traziam no rosto um ar repousante de uma alegria ingênua
que achei bonito. Vinham de uma cidade longínqua do interior, cujo nome não me
vem à lembrança, e desejariam apenas conhecer-me. Fiz menção de oferecer-lhes
um café, pedir-lhes que se sentassem um pouco, mas não aceitaram. A razão era
que deveriam voltar dentro de dez minutos...
Segundo - Eu regressava a Aracaju com meu filho, ainda
pequeno, num sábado à noite. Com o pensamento distante, ouvindo o rádio do
carro, não percebi que passava pelo posto da Polícia Rodoviária, cujo
plantonista fez acionar a sirena da sua moto imediatamente. Encostei o veículo
e aguardei que ele chegasse até nós. Ele me pediu que recuasse até o seu local
de trabalho. Em seguida, solicitou-me a apresentação dos documentos. Leu e
releu uma página e me disse: “Sua carteira está vencida. Pelo que tenho aqui, o
senhor poderia ser convidado a deixar o carro conosco, mas acontece que amanhá
é domingo e todos nós ouvimos o seu programa. Quando chegar em Aracaju,
providencie outro documento.” Seus companheiros também vieram para um aperto de
mão que me comoveu.
Terceiro - Certo dia, encontrei em um jornal do sul uma
notícia singular. Era falava do Dia das Comunidades Portuguesas no Mundo, em 10
de junho, e como uma comemoração diferente, o Governo de Portugal estava
enviando uma mensagem alusiva à data, escrita em cinco idiomas: português,
francês, inglês, alemão e espanhol, com os seguintes dizeres:
“Oh mar salgado, quanto do teu sal
são lágrimas de Portugal”
O último apelo, escrito com sangue, a única esperança,
redigida com estrelas, dos que se viam em riscos de naufrágio e morte.
Esta garrafa ao mar é, pelo contrário, uma afirmação plena
de vida, uma mensagem de amor que Portugal envia ao mundo, desejando paz e
felicidade a todos os homens da terra de todas as latitudes e idiomas, de todas
as raças e credos, abraçando-os por igual ao coração.”
Esta mensagem, aliás, um certo número desta mesma mensagem,
escrita em cinco línguas, foi colocada em garrafas especiais e lançadas ao mar.
O texto jornalístico adiantava ainda o seguinte :”Portugal oferecia uma
passagem aérea à pessoa que encontrasse uma dessas garrafas e a encaminhasse ao
cônsul de Portugal de sua cidade.” Não parece uma história de fadas ?
Pois bem. Li esta notícia no programa Rádio Revista. Cerca
de uns vinte dias depois, outro ouvinte apareceu lá no Banco querendo falar
comigo. Sem mais delongas, entregou-me uma das mensagens que havia encontrado
na Atalaia Nova !
Recebi o texto, sem acreditar no que via. “O senhor disse
que há um prêmio para a pessoa que tiver encontrado isso. Mas sou um pescador e
não tenho condições de viajar. Quero que o senhor viaje por mim.”
Ainda tenho comigo esta relíquia de Rádio Revista, como
tenho ainda no coração muitos outros casos. Quando fazemos uma coisa por amor,
não podemos jamais perder. A recompensa virá, de um modo ou de outro, mas nunca
falta. No caso do rádio, o segredo é considerar o microfone com uma pessoa de
fato, uma pessoa que não conhecemos e que transmite dignidade, a quem devemos
tratar com respeito.
NOTA: Este depoimento foi por mim prestado na Universidade
Federal de Sergipe por ocasião do Primeiro Seminário de Rádio, a convite do
Professor e jornalista Luciano Correia, em 18 de julho de 2002. Está inserido
neste livro em atendimento a alguns professores da Universidade então
presentes.
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE,
em 1 de agosto de 2013, feita pelo membro Gabriel de Andrade Gomes.
em 1 de agosto de 2013, feita pelo membro Gabriel de Andrade Gomes.
Beleza Armando, ficou massa!
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